Mito, superstição e o nascimento da filosofia
No princípio, segundo antigas tradições, tudo era caos. Diversas culturas ao redor do mundo desenvolveram narrativas mitológicas para explicar a origem do universo, a criação da vida e os ciclos naturais que observavam. Cada povo, a partir de sua realidade étnica, geográfica e religiosa, construiu mitos como forma de organizar simbolicamente a experiência humana e tornar compreensíveis os fenômenos que escapavam à razão.
Os mitos se destacam por seu papel na transmissão de valores culturais e por representarem, muitas vezes, forças da natureza ou características humanas por meio de personagens divinos ou heróicos. A mitologia grega, por exemplo, conferia a cada deus do Olimpo uma dimensão simbólica — Zeus como o poder supremo, Afrodite como a beleza e o amor, Ares como a guerra —, refletindo tanto aspectos psicológicos quanto forças naturais.
Em contraposição, as superstições habitam o campo das crendices populares, sem a densidade simbólica ou cultural dos mitos. Superstições, como evitar passar por baixo de uma escada ou temer um gato preto cruzando o caminho, baseiam-se em associações arbitrárias, sem fundamentos filosóficos, científicos ou antropológicos. A famosa sexta-feira 13, por exemplo, é considerada por muitos como um dia de azar, ainda que essa crença careça de lógica ou fundamento racional.
Mitos como patrimônio cultural
Os mitos ocupam uma posição essencial na herança cultural da humanidade. São relatos que atravessam gerações, formando parte do que antropólogos e sociólogos reconhecem como a identidade simbólica de um povo. Essa transmissão se dá por meio do processo de socialização e está intimamente ligada ao contexto geográfico, social, histórico e ambiental em que o grupo se insere.
Um dos grandes estudiosos contemporâneos dessa temática foi o psicólogo americano Joseph Campbell, autor da célebre obra "O Herói de Mil Faces", onde propõe o conceito da "Jornada do Herói" — uma estrutura narrativa presente em diversas culturas. Segundo Campbell, os mitos não estão distantes de nós. Eles nos oferecem chaves simbólicas para compreender a experiência humana, revelando padrões universais de busca, superação e autoconhecimento. A estrutura de sua obra foi inspiração direta para obras da cultura pop, como a saga Star Wars.
No Brasil, a psicóloga Theresa Christina Oliveira Coimbra coordena os estudos da Fundação Joseph Campbell, aprofundando a análise dos mitos como elementos vivos no cotidiano das pessoas. Campbell acreditava que os mitos, mais do que explicar fenômenos que escapam à razão, ressoam no íntimo de cada indivíduo, funcionando como mapas existenciais para nos orientar diante da vida.
Mitos e filosofia: onde tudo começou
Você pode estar se perguntando: qual é a relação entre mito e filosofia? A resposta é: uma relação direta e histórica. Desde os primórdios da humanidade, a curiosidade foi uma marca fundamental do ser humano. A busca por explicações para os mistérios da vida, como o nascimento, a morte, as estrelas, as doenças e os desastres naturais, sempre existiu. No entanto, em épocas antigas, os recursos informativos eram escassos. Sem ciência, sem livros, sem internet, as respostas vinham da tradição religiosa, por meio dos mitos — palavra grega (mythós) que originalmente significava discurso, narrativa ou relato.
Esses relatos míticos não eram apenas invenções, mas formas simbólicas de restaurar o equilíbrio emocional e social, ao fornecer explicações para o que causava medo ou angústia. Eles representavam uma tentativa de compreender a ordem do cosmos e o lugar do ser humano no mundo.
Os mitos de origem de cada sociedade sempre tinham algo comum ao cotidiano do povo em questão. Para os Astecas o homem veio do milho, para os hebreus veio do barro, em abundância no crescente fértil. Essa é a forma como um determinado grupo cultural constrói e reproduz para os seus membros explicações sobre a origem de tudo, quase sempre fazendo referências à fertilidade, virilidade, ciclos da natureza e outros fenômenos. Já na mitologia grega, cada deus do Olimpo representa aspectos do comportamento humano ou uma força da natureza.
Com o tempo, no entanto, o pensamento humano passou a buscar explicações mais racionais e coerentes, e os mitos começaram a perder espaço para um novo modo de compreender a realidade: a filosofia. Em vez de atribuir os trovões à ira de Zeus, passou-se a investigar as causas naturais do som e da eletricidade. Foi essa transição — do discurso mítico ao racional — que marcou o nascimento do pensamento filosófico na Grécia Antiga.
Conclusão
Mitos e superstições continuam presentes em nossa cultura, mas com significados diferentes. Os mitos permanecem como relatos simbólicos e estruturantes da experiência humana, enquanto as superstições refletem crenças infundadas que resistem ao exame racional. A filosofia, ao surgir, não nega totalmente o mito, mas o supera enquanto forma de explicação. Ela inaugura uma nova maneira de pensar, baseada na razão, na crítica e na busca pelo conhecimento fundamentado.
Portanto, compreender os mitos é também compreender nossa própria história intelectual, pois eles foram o solo fértil onde germinou a semente da filosofia — o desejo de entender o mundo de forma livre, crítica e racional.